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UE/Cimeira: Acordo “é bom, mas não excelente” e tem riscos para o futuro
Dinheiro Vivo


O acordo dos 27 sobre o orçamento plurianual e o fundo de recuperação “é bom” por permitir fazer face à crise, mas acarreta riscos, e oportunidades, para o futuro da integração europeia, segundo especialistas ouvidos pela Lusa.

“Eu acho que é um bom, e não excelente, mas um bom resultado imediato”, disse à Lusa Miguel Poiares Maduro, especialista em Direito Europeu, alertando contudo para que ele “é incerto quanto aos seus efeitos futuros”.

Como aspetos positivos, Poiares Maduro salientou que se trata de “um montante substancial de fundos”, “que aqui há poucos meses muitos achariam que era altamente improvável”, que foi “uma resposta relativamente rápida da União” e que, para Portugal, “significa que no curto prazo […] vai receber mais fundos do que alguma vez recebeu, mesmo no período pós-adesão”.

“Do lado da avaliação positiva, eu diria que há um precedente importante na adoção de um programa de recuperação económica assente em apoios diretos, a fundo perdido, e na emissão de dívida europeia”, um “precedente novo” e “um passo positivo” que, associado ao compromisso para novos recursos próprios, “vão no sentido do reforço da integração europeia porque reforçam a capacidade de integração, a capacidade orçamental e a integração fiscal na União Europeia”. 

Poiares Maduro identificou por outro lado “passos preocupantes” e de “risco para o processo de integração europeia”: a intergovernamentalização subjacente à decisão de submeter os programas nacionais para as verbas do fundo de emergência à aprovação por maioria qualificada dos 27 e a lógica de “troca de fundos permanentes para compensar pelo maior financiamento temporário”, referindo-se à redução do orçamento para programas geridos por Bruxelas para compensar a dotação do fundo de recuperação. 

António Goucha Soares, também especialista em Direito Europeu, também apontou como positivo ter-se conseguido um acordo europeu, destacando como se estava “na iminência de este acordo não ser alcançado” a tempo e que ele responde a graves problemas económicos que a pandemia provocou. 

“A UE está a fazer testes de sobrevivência sucessivos e a pandemia também expôs a UE a uma série de perigos, nomeadamente aos fundamentais da sua essência, como é o mercado interno. […] Depois de a UE ter passado pela crise grave do euro, quase uma década, depois de ter perdido o Reino Unido, se agora rebentasse também o mercado interno, não sabemos o que é que iria ficar”, explicou, considerando que “de alguma forma”, o acordo “tem esta dimensão existencial”. 

Goucha Soares desvalorizou por outro lado os cortes no orçamento comunitário, em programas como o de ciência ou transição energética, considerando que “não se cortou significativamente” e destacando que a prioridade era o fundo de recuperação.

 “Se pensarmos que este fundo de recuperação surgiu como um imperativo para acudir à situação dramática das economias, das grandes economias do mercado interno mais atingidas pela crise, e essas economias recebem este apoio […] é uma boa vitamina para esta ameaça que a UE estava a sofrer com a covid-19”, afirmou. 

Para o especialista, “é essencial para o projeto europeu que a Itália continue a permanecer alinhada com a UE e não entre numa deriva”, tal como Espanha. 

Itália vai receber 200 mil milhões de euros, “uma lufada brutal de oxigénio”, “uma folga financeira que lhes permite ganhar tempo […] o que significa afastar por mais meses ou por mais anos os populistas eurocéticos do poder”. 

Bernardo Pires de Lima, investigador de relações internacionais, salientou que o acordo permitiu ultrapassar riscos importantes: a expetativa social de “muitos milhões à volta das televisões e das redes sociais à espera de uma resposta europeia” para problemas concretos, “a perceção dos mercados e a pressão sobre as taxas de juro [que] imediatamente iriam incidir sobre os Estados mais vulneráveis se não houvesse um acordo” e “a arrumação” do semestre da presidência alemã do Conselho. 

O investigador apontou também como um resultado potencialmente positivo deste acordo a mutualização da dívida, com a Comissão Europeia a contrair dívida junto dos mercados para financiar o plano de recuperação, “um dado completamente novo” que “pode ser o embrião de uma Europa financeiramente mais federalista, chamemos-lhe assim”. “Isso pode vir a ficar como um bom balão de ensaio para outro tipo de questões, nomeadamente de harmonização fiscal e de ‘governance’ do euro, que sejam um salto em frente no sentido da justiça e da equidade entre os Estados-membros”, explicou. 

Pelo lado negativo, o investigador aponta a proporção de verbas do fundo de recuperação que vão ser canalizadas a fundo perdido, que na proposta da Comissão era de dois terços e no acordo do Conselho acabou por ser pouco mais de metade, em virtude de o Conselho ceder “em demasia, a um núcleo muito pequeno de Estados que não é suficientemente poderoso nem representativo”. 

Quanto aos cortes efetuados no Quadro Financeiro Plurianual, que afetam programas europeus, Pires de Lima admitiu que “necessariamente teria de haver danos colaterais”, mas apontou que “transmite um sinal político que vai ao arrepio das prioridades da comissão, alinhada com o Parlamento Europeu”, o que o faz prever “alguma tensão nos próximos meses”. 

Peso dos “frugais”
reforça poder dos governos face a instituições O peso assumido pelos “frugais” nas negociações do orçamento europeu reflete “uma intergovernamentalização do processo europeu”, uma “consolidação de uma Europa de coligações de vontades” ou “uma linha de atuação iniciada na crise do euro”, segundo especialistas ouvidos pela Lusa. 

Os “quatro frugais” – Holanda, Áustria, Dinamarca e Suécia – assumiram nas negociações do orçamento plurianual e do fundo de recuperação da União Europeia (UE) uma série de entraves ao acordo, que tinha obrigatoriamente de ser aprovado por consenso, fazendo arrastar a cimeira por cinco dias e obtendo concessões importantes no texto final. 

Estes países opunham-se nomeadamente ao montante global do fundo e do orçamento europeu, o chamado Quadro Financeiro Plurianual (QFP), e à proporção do fundo de recuperação canalizada a fundo perdido, tendo conseguido reduzir o orçamento em 2% e reduzir as subvenções de dois terços para metade.

“Penso que não foi só, nem talvez predominantemente, uma questão dos valores das verbas”, afirmou à Lusa Miguel Poiares Maduro, especialista em direito europeu. 

“Acho que foi sobretudo uma questão de intergovernamentalização, e essa é que me preocupa pelo processo de integração europeia. Ou seja, mais controlo pelo Conselho Europeu das decisões europeias e menos pelas instituições genuinamente europeias, como a Comissão e o Parlamento Europeu”, explicou. 

Sinal disso, apontou, são decisões que constam do acordo alcançado na terça-feira como a de os programas de reformas que os países têm de apresentar para obter o financiamento do fundo de recuperação terem de ser aprovados por maioria qualificada do Conselho, que reúne os chefes de Estado e de Governo dos 27. 

Tal exigência, que permite a formação de uma “minoria de bloqueio” que, no limite, pode impedir o financiamento de um programa, é um retrocesso, segundo Poiares Maduro, “até relativamente ao que funcionava com a ‘troika’, em que as decisões eram tomadas pelas instituições genuinamente europeias”. 

Poiares Maduro apontou também que o peso negocial dos ‘frugais’ decorreu de uma utilização estratégica do princípio de que “é possível ter uma minoria de bloqueio eficaz desde que se esteja confortável com o ‘status quo'”.

“Repare, para eles, ser minoria, bloqueando, não era um problema, porque se não houvesse decisão eles estariam sempre confortáveis com isso […] Num processo negocial há sempre um grande desequilíbrio entre aqueles que necessitam que pelo menos alguma [decisão] seja adotada e os outros que estão confortáveis com o ‘status quo'”, afirmou. 

António Goucha Soares, também especialista em Direito Europeu, considerou que os ‘frugais’ “projetaram uma cultura que se instalou na UE na última década nos termos da qual há uma estigmatização de um conjunto de países”, iniciada durante a crise do euro e que “passou pela utilização de uma linguagem pouco cortês de certos países” em relação a outros, designadamente os mais atingidos pela crise da dívida. 

Trata-se de “uma dimensão recente” do discurso político, “que foi oficializada a partir da crise do euro”, que, “quando se está a falar do orçamento tem profundas implicações económicas”. 

“A crise do euro veio trazer um elemento que é: quem avança com o dinheiro tem direito a impor condições e a imiscuir-se nos assuntos de outros países”, afirmou. 

Para Bernardo Pires de Lima, investigador de relações internacionais, “o espaço que se deu aos quatro frugais” é “um ponto muito negativo e muito transversal a este Conselho”. 

Tratando-se de quatro países que, juntos, têm “a população de Espanha” e uma “contribuição líquida para o orçamento equivalente à Itália”, conseguiram na cimeira “”um poder acima das suas capacidades”. 

Isso reflete, na opinião de Pires de Lima, uma “consolidação de uma Europa de coligações de vontades”, “grupos mais ou menos formalizados de Estados que, em função de um determinado tema se agrupam e em função de outro tema fazem uma variação para outro tipo de alianças”. 

O investigador dá vários exemplos – Visegrado, Weimar, Amigos da Coesão, escandinavos, hanseáticos -, para frisar que essa evolução, que “torna muito mais difícil gerir a Europa”, lhe parece “inevitável”. 

O especialista considera por outro lado que os “frugais” vieram ocupar o “vazio de influência” aberto com a saída do Reino Unido da UE.

“Os holandeses assumiram um bocadinho o papel dos britânicos, que era mais ou menos previsível a partir do momento em que o Reino Unido, que funcionava um bocado como biombo, para outros Estados se refugiassem nas suas posições e se esconderem atrás dele”, explicou.