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Covid-19. As máscaras vão passar a fazer parte das nossas vidas ou desaparecer com o fim da pandemia?
EXPRESSO


Inicialmente vistos como inúteis e até prejudiciais, estes equipamentos de proteção individual tornaram-se fundamentais para combater o vírus - ao ponto de terem tornado a gripe sazonal quase inofensiva no hemisfério sul. Quando esta pandemia terminar, vão voltar a ser um objecto exótico guardado no fundo da gaveta, ou confirmar-se como uma arma banal mas importante para mitigar outros vírus? Ricardo Mexia acha que é possível, Pedro Simas nem por isso: “Não podemos ter uma sociedade completamente asséptica. É preciso um equilíbrio”

No início, a ciência dividiu-se: entidades como a Organização Mundial de Saúde ou o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) aconselharam as pessoas a não usarem máscaras para travar a covid-19. Os meses passaram e os especialistas foram concluindo que resguardar a boca e o nariz era um elemento central para evitar a propagação da doença. O CDC reverteu a versão internacional da “falsa sensação de segurança” em abril e a OMS fê-lo em junho, já depois de Portugal ter adoptado a medida.

Entretanto, as máscaras parecem ter actuado indiretamente noutros pontos da saúde pública. Enquanto que Portugal se preparava para o verão possível em tempos de pandemia, a Austrália passou pelo inverno nos meses de junho, julho e agosto praticamente aniquilando o impacto do habitual vírus da gripe sazonal: de 430 mortos em 2019 passou para apenas 36 no ano da covid-19. A razão? O distanciamento social e o uso das máscaras. Este cenário verificou-se em todo o hemisfério sul, do Chile à Nova Zelândia, da África do Sul à Argentina.

Poderão as máscaras ficar depois da pandemia terminar? “É uma reflexão que vai ter de ser feita”, responde Ricardo Mexia, presidente da Associação Portuguesa de Médicos de Saúde Pública. “Do ponto de vista do impacto que tem no controlo de algumas doenças pode vir a ser útil.” Na Ásia, por exemplo, as máscaras não foram novidade. “Já era relativamente frequente ainda antes da pandemia as pessoas usarem máscara - por um lado devido à poluição do ar, por outro devido a terem sistemas respiratórios”, explica.

As máscaras poderão então ajudar nos futuros combates com a gripe? “Sempre se desvalorizou um pouco o impacto da gripe. Havia medidas como a vacinação para se reduzir esse impacto, mas de alguma forma a morte associada à gripe era quase encarada como… inevitável. Esta nova percepção que temos, de que podemos fazer coisas para reduzir esse impacto, pode vir a fazer sentido de uma forma mais perene noutras alturas”, considera Ricardo Mexia.

Obviamente que os atuais níveis de restrições não poderão ser exequíveis de uma forma perpétua, diz o especialista, mas no que toca a medidas menos disruptivas para o nosso funcionamento em sociedade, que permitam reduzir a exposição e o impacto de doenças transmissíveis pelo ar, “seguramente que as máscaras estão incluídas.” “Porque são soluções pouco intrusivas que permitem às pessoas continuarem a fazer grande parte das suas vidas. Se quem estiver com sintomas [de uma infecção] pelo menos usar um equipamento de proteção social, o risco é desde logo reduzido”, conclui.

A IMPORTÂNCIA DAS MÁSCARAS NO PROCESSO DE VACINAÇÃO E O EQUILÍBRIO NECESSÁRIO DEPOIS

“As máscaras vão ser muito importantes durante a vacinação, porque ainda não sabemos a eficiência das vacinas contra infecções [de covid-19] assintomáticas”, garante por sua vez Pedro Simas, virologista na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Tanto a vacina da Pfizer e da BioNTech como a da Moderna mostraram que protegem contra as infecções pulmonares, em casos de doença grave. No entanto, ainda não se sabe como atua nos casos assintomáticos. “Pode ser que sejam eficazes, mas ainda não sabemos. Se verificarmos que só protege 50% dos assintomáticos, estas pessoas podem disseminar o vírus mesmo não ficando doentes.” Além disso, a imunidade de grupo não é construída instantaneamente - e daí a importância das máscaras.

Quanto ao seu uso depois de ultrapassada a pandemia, Pedro Simas é perentório: “Não. Depois do vírus passar a ser endémico não vamos precisar de usar máscaras. A imunidade de grupo irá proteger grupos de risco”, explica. Nem mesmo que as máscaras baixem os números de mortos associados à gripe sazonal? “Nunca usamos máscara para mitigar o efeito da gripe, nem é desejável. Quanto mais tempo ficarmos sem apanhar gripe, mais grave ela será quando a apanharmos.”

Pedro Simas dá o exemplo do vírus da poliomielite, que sempre evoluiu a par e passo com o homem mas só se tornou num problema generalizado na Califórnia quando começaram a ser criados esgotos e saneamento. “As melhorias de higiene interromperam a transmissão da infeção, e criou-se toda uma população de crianças que não tinham imunidade, e eram contaminadas por pessoas que vinham do campo para a cidade à procura de melhores condições de vida”, contextualiza o investigador.

Outro momento histórico que mostra que demasiada proteção pode ser contraproducente é a última vaga da gripe suína (gripe A), que aconteceu devido à “vacinação compulsiva” de porcos nos Estados Unidos, lembra. “Na China, por exemplo, as crianças são quase obrigadas a usar máscara para protegerem os outros caso tenham sintomas de febre. Mas trata-se de uma decisão a título individual, e nós vivemos numa sociedade diferente”, completa.

“Não podemos ter uma sociedade completamente asséptica. É preciso um equilíbrio. Quanto mais assépticos nos tornamos, mais o sistema imunológico precisa de contactar com microrganismos para ganhar imunidade. O vírus [da gripe] tem de ter alguma liberdade para circular”, diz Pedro Simas. As máscaras deverão ter um descanso depois da covid-19, e nós também: “as pessoas já estão cansadas de usar máscaras, há imensa polémica sobre o tema. Não é acertado mantê-las mais tempo do que são necessárias para lidar com esta pandemia”, conclui.