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“AS PESSOAS NÃO VOLTARÃO A VIAJAR SIMPLESMENTE PORQUE OS GOVERNOS DIZEM ‘AGORA PODE VIAJAR’”
Publituris


A crise pandémica da COVID-19 veio impactar de forma brutal a indústria do turismo. Se antes as preocupações poderiam parecer triviais, um vírus invisível veio trazer um cenário, até agora, inimaginável. Certo é que, como em muitas indústrias e setores, nada será como antes e haverá sempre um pré e um pós-COVID.

Em entrevista ao Publituris, Taleb Rifai, ex-secretário-geral da Organização Mundial do Turismo (OMT), destaca que a indústria terá de se adaptar a um novo consumidor, mais digital, mas, também, perceber que a retoma começará, em primeiro lugar, pelo turismo doméstico e regional.

Há quatro anos, em entrevista ao Publituris, a primeira pergunta colocada foi: “Como define o momento atual do turismo, considerando os últimos acontecimentos relacionados com o terrorismo, o Brexit e a eleição de Trump?”. Hoje começo por perguntar-lhe, como define o momento atual do turismo, considerando a crise pandémica que se vive há mais de um ano?

Há quatro anos, ninguém esperava a crise da COVID-19 e o impacto que teria, ou melhor, tem na indústria de viagens, em particular.

Em resposta direta à sua pergunta, acredito que este é um momento definido na história da humanidade no seu todo. Tudo irá mudar.

Há quatro anos, lembro-me de ter dito que, o terrorismo, o Brexit e a eleição de Donald Trump para Presidente dos EUA iriam afetar a indústria de viagens negativamente e de diferentes formas e graus. Mas o turismo, como sabemos, recuperou e conseguiu-o em menos anos.

Hoje não recuperaremos, mas iremos dar um salto em frente, para um novo mundo, para novas normas. Em meu entender, um mundo melhor e mais sustentável.

Por isso, estou muito otimista, mas não por ir ou voltar ao estado em que nos encontrávamos, mas antes por avançarmos para uma forma de crescimento mais sustentável. As pessoas continuarão a viajar, até talvez mais, mas irão fazê-lo de uma forma mais sustentável.

O setor do turismo, de modo geral, sofre há um ano com quebras nunca antes vistas. Em seu entender, haveria alguma forma de qualquer país preparar-se para este “desastre”?

O setor de viagens é um dos setores mais afetados pela COVID-19. A única forma de qualquer país fazer melhor, teria sido por uma melhor coordenação das suas ações e procedimentos, desde logo, com seus países vizinhos. O truque, se me é permitida a expressão, não é fazer um trabalho perfeito sozinho, mas sim por conseguir concordar com procedimentos mínimos, começando com os destinos que fazem fronteira com o nosso país até alcançarmos um nível internacional. Necessitamos de um novo sistema multilateral, um sistema mais harmonizado, justo e equitativo, porque não é importante o sucesso de cada país per si, se depois não for possível viajarmos de um lado para o outro. Esta é a natureza de viajar, ligar pessoas e lugares.

Confiança

A vacinação é fulcral para que o setor do turismo regresse a um “novo” normal. Quanto tempo julga ser necessário até regressarmos a uma normalidade vivida pré-pandemia?

A este ritmo, vacinar 70% da população mundial demorará cinco anos. A indústria das viagens só recuperará para uma nova norma, quando o mundo inteiro estiver pronto para viajar sob um sistema unificado. A natureza da viagem é a de enviar pessoas e receber pessoas. Por isso, não será aconselhável depender somente da vacinação, se o que queremos é uma recuperação rápida. Podemos e devemos começar por avançar, imediatamente, com um sistema de testes harmonizado, tornando-o mais disponível e acessível para todos. É mais fácil e rápido.

Confiança é a palavra-chave para um regresso a essa nova norma?

Absolutamente, não haverá recuperação do turismo até as pessoas terem uma paz de espírito e confiança num sistema. Sistema esse que terá de ser um sistema internacional. As pessoas não voltarão a viajar simplesmente porque os seus governos dizem “agora pode viajar“.

Com a vacinação vem agora a vontade de se aplicar um “certificado/passaporte sanitário ou de vacinação”. Esta aplicação é, em seu entender, a melhor forma de garantir a segurança sanitária para países e viajantes e dar-lhes confiança?

Sinceramente, espero que isso não se torne o caso. Não é justo nem equitativo, no mundo de hoje, para os países e pessoas que não possuem vacinas ou não consigam vacinar a maioria da sua população. Não queremos transformar isto num jogo político dos que têm e dos que não têm. Os testes acessíveis, de forma harmonizada, são muito mais lógicos para uma recuperação mais rápida e imediata.

Em seu entender, estas medidas poderão levar a uma eventual discriminação involuntária para quem ainda não teve oportunidade de ser vacinado?

Esse é exatamente o ponto fulcral. Mas o mais importante é perceber, se isso acontecer, que todos perderemos, aqueles que vacinaram e os que conseguiram vacinar. Ninguém viajaria para um destino não estando vacinado, e nenhum destino com a população vacinada aceitaria receber pessoas de um destino não vacinado. No fundo, viajar é conectar todos em todos os lugares. Por isso, nada disto funcionará até que todos estejam vacinados. E isso demorará muito tempo.

Europa (des)unida

No caso da União Europeia, que deveria, por exemplo, funcionar como “una” e existir uma política harmonizada, verifica-se que existem países que estão a criar os seus próprios corredores turísticos e outros não. Isso poderá criar problemas ou ser entendido como concorrência desleal?

Com certeza, e essa situação já está a ocorrer. Não será possível ter um país que insista na quarentena, enquanto o seu país vizinho exige um passaporte de vacinação e um terceiro exija simplesmente um teste de 72 horas antes da chegada ou nos pontos de entrada. A UE é um bom exemplo desta falha do sistema multilateral. Até mesmo os Estados Unidos da América já não são “unidos”. Cada Estado está a agir por conta própria, tal como o sistema global da ONU. Todos falharam. Precisamos de reconstruir um novo sistema de raiz, peça por peça.

Com a falta de segurança sentida pelos turistas, as viagens de proximidade serão as primeiras a conhecer uma possível recuperação, segundo a maioria dos analistas. Também é essa a sua perceção?

Com certeza que os grandes vencedores desta crise serão o turismo doméstico e o turismo regional. É verdade que o turismo doméstico não traz receitas nem contribui para o equilíbrio do comércio da mesma forma, mas ajuda a manter vivos negócios e empregos, o que é algo positivo, especialmente para países em desenvolvimento onde um turista é simplesmente um estrangeiro, uma pessoa loura de olhos azuis. Nenhum país que não seja apreciado e visitado pelos próprios nacionais pode ou deve ser apreciado por um visitante externo. Para mim, esta é uma questão de princípio. Não se trata somente de uma necessidade atual ou temporária devido a uma crise.

“Nenhum país que não seja apreciado e visitado pelos próprios nacionais pode ou deve ser apreciado por um visitante externo”

Que alterações estruturais poderá esta crise sanitária trazer ao setor do turismo a nível global? Poderemos estar perante o desaparecimento, fusões, compras e vendas de players, destinos, companhias, etc.?

Irá mudar tudo. Só aqueles que compreendem que estamos a rumar em direção a uma nova norma, uma nova realidade, sobreviverão.

E que nova realidade é essa?

Existe um novo mundo em construção, um novo mundo mais justo, equitativo e, portanto, mais sustentável. Todos terão de se ajustar.

Infelizmente, a indústria do turismo não é a melhor quando se fala em ajustes ou pensar de forma inovadora. Lembremo-nos somente disto: fomos capazes de colocar um homem na Lua antes de colocar duas rodas numa mala de viagem. Isto demonstra o nosso conservadorismo e confirma que esta nossa indústria é lenta.

Portugal conquistador

No caso de Portugal, as expectativas eram de que 2020 seria o melhor ano para a indústria do turismo. A pandemia veio trazer precisamente o inverso, não se sabendo quando poderá chegar a tão aguardada e falada retoma. Em 2017 referia que Portugal era um grande facilitador do turismo e que o grande ativo do país eram as pessoas. “São as pessoas que fazem a diferença e as pessoas em Portugal são muito especiais”. São essas mesmas pessoas que poderão fazer a diferença para a retoma do turismo em Portugal?

Diria que sim, absolutamente. Ainda acredito fortemente nas pessoas de Portugal, essa pequena nação de grande coração. Para conseguir a retoma e unir o mundo, comecem com o vosso vizinho, depois a Europa, o norte da África e, por fim, o resto do mundo. Alguém tem que assumir a liderança. Vocês já o fizeram há muito tempo. Todos os continentes do mundo têm, hoje, um país e pessoas que falam português. Por isso, vocês poderão fazê-lo outra vez. Não admira que o Secretário-geral das Nações Unidas seja português.

Estimando que as pessoas não quererão fazer viagens muito longas numa primeira fase, quem serão os grandes “concorrentes” de Portugal? Os países europeus, os países do norte de África ou pensa que os diversos confinamentos a que as pessoas foram sujeitas as levará a querer viajar para destinos mais exóticos?

No turismo não há concorrência entre vizinhos. Geralmente, o que é bom para o meu vizinho é bom para mim. É semelhante ao princípio dos “souk”, onde todos os que vendem especiarias ou ouro estão na mesma rua. Um cliente traz outro. A concorrência está apenas na qualidade dos serviços.

Quanto mais pessoas viajarem para Espanha ou para o norte de África, mais virão para Portugal. Tal como já referi, será o turismo doméstico e regional a recuperar primeiro.

Saída a 3 tempos

Companhias aéreas, hotéis, restaurantes, estes foramstakeholdersque sofreram quebras significativas. Quem sofrerá maiores problemas de adaptação na esperada recuperação?

Estão todos no mesmo barco. Todos têm de se ajustar. As companhias aéreas devem comunicar mais confiança na limpeza e higiene e devem ter uma política de reserva e cancelamento mais flexível. No caso dos hotéis, terão de reconhecer que os clientes nacionais e regionais serão os primeiros a chegar, seguidos, eventualmente, dos nómadas digitais, que requererão reservas especiais de longo prazo. Assim, terão de surgir novas e ofertas especiais. Os restaurantes, por sua vez, vão ter de entender que terão de apostar no delivery e ajustar os lugares, adaptando os espaços ao distanciamento social, com mais lugares no exterior.

Por isso, para além de todas as mudanças e alterações, tudo terá de transmitir uma ideia e confiança de limpeza e higiene.

No que toca às ajudas que os diversos governos/países e entidades têm dado à indústria do turismo, em sua opinião, estas ajudas serão suficientes para uma recuperação rápida? Existiriam ou existirão outras medidas e apoios que deveriam ter sido postos em prática ou introduzidos a partir de agora?

Existem três estágios para uma recuperação. Em primeiro, manter os negócios vivos, o que requer apoios diretos ou empréstimos por parte dos governos só para garantir que os negócios tenham tempo suficiente para adaptar-se à nova realidade e sobreviver.

Em segundo lugar, concentrar-se no turismo doméstico e regional, o que exige que o setor privado se ajuste rapidamente às novas realidades de tais viajantes, e disponibilize novas ofertas. Só assim e depois os governos poderão parar os apoios diretos.

Em terceiro e último, viagens internacionais, que devem começar pelos jovens nómadas digitais, e apólices de seguro especiais para estrangeiros que exigem soluções e pacotes especiais do setor do alojamento, bem como apoio governamental na ligação com seguradoras, promoções, vistos e questões fiscais para estadias mais longas dos tais nómadas digitais.

Com ex-Secretário-geral da OMT, haveria algo que a organização poderia ter feito ou essa é uma responsabilidade exclusiva dos respetivos países?

Sinceramente, esperava-se que a OMT, como qualquer outra organização governamental multinacional da ONU, fosse capaz de trabalhar em formas para que os governos do mundo concordassem num sistema mínimo, como já expliquei.

O “novo” viajante

Como também já referiu, é global a noção de que o mundo será mais digital e, forçosamente, com maiores preocupações ao nível da sustentabilidade e questões climáticas. Como é que a indústria do turismo poderá adaptar-se a estas novas exigências?

O mundo está a tornar-se cada vez mais digital. Nós simplesmente temos de adaptar-nos e fazer o melhor uso da tecnologia. Para pensar fora da caixa, a indústria do turismo deve reconhecer que tudo pode tornar-se digital e virtual, não apenas reuniões e conferências, mas também eventos públicos, como concertos ou grandes reuniões, atividades de ginásio e mesmo eventos pessoais. Eu, por exemplo, assisti ao casamento da minha filha, no Dubai, via Zoom. Eu estava em Amã, Jordânia, com o pai do noivo, e ela e o futuro marido estavam no Dubai, com o sacerdote noutra linha. Só temos de ser imaginativos e usar a tecnologia disponível ao máximo.

Também o consumidor, viajante, turista modificou-se. Estamos perante um público mais jovem, com maior conhecimento, mais digital, mais exigente, menos fiel, etc.. De que forma é que o turismo terá de lidar com este novo público?

Tem toda a razão. Primeiro temos de reconhecer as mudanças, compreendê-las e admiti-las. Depois, teremos de pensar de forma imaginativa nas mudanças necessárias, através da tecnologia, sustentabilidade e campanhas e promoções inovadoras, honestas e transparentes, sempre tendo em mente e adaptadas ao novo consumidor digital e bem informado.

Que ensinamentos é que a indústria do turismo poderá ou deverá retirar desta atual crise?

Muitas lições, tais com o valor e a importância de viajar em conjunto, em particular nas viagens domésticas e regionais, que se tornaram mais importantes.

Por outro lado, a importância e prominência da tecnologia digital, as regras sanitárias e de segurança das novas normas e, finalmente, a necessidade de reter a nossa força de trabalho, de forma a ajustar-se a todos os anteriores pontos, com o objetivo de passar a usar o tempo ideal disponível.

Que mensagem teria para a indústria do turismo global, caso ainda exercesse as funções de Secretário-geral da OMT?

Juntem-se. Só conseguiremos fazer isto juntos. Nenhum governo pode fazer isto sozinho, independente da qualidade do plano adotado para a retoma do turismo.

Existem oportunidades que surgem em todas as crises, não percamos esta. Lembremo-nos que, em chinês, a palavra crise e a palavra oportunidade são uma única.