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Governo mantém poderes mas fica na mão de Marcelo
JORNAL DE NEGÓCIOS


Não é pacífica entre os constitucionalistas a ideia de que, dissolvido o Parlamento, o Governo mantém a plenitude dos seus poderes. Ainda que assim seja, Marcelo tem veto absoluto e poder para o demitir.

Um Orçamento chumbado, um primeiro-ministro que garante que não se demite e um Presidente da República decidido a dissolver o Parlamento e a convocar eleições antecipadas. O cenário surge pela primeira vez em democracia depois de esta quarta-feira a proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2022 ter caído por terra no Parlamento, com os votos contra da direita, Bloco, PCP e PEV. Algumas horas antes, Marcelo repetira, mais uma vez, aos jornalistas, que “se a AR entende que não está em condições de aprovar um Orçamento que é fundamental para o país”, então há que “devolver a palavra aos portugueses para dizer o que é que pensam relativamente a uma futura Assembleia que aprove o Orçamento que é fundamental para o país”. E mal foi conhecido o resultado da votação, Marcelo anunciou, em comunicado, que iria reunir o Conselho de Estado e reunir-se com os partidos.

Lançados os dados, e enquanto os contornos da decisão presidencial não são ainda conhecidos, fica a pergunta: com que linhas se vai coser o Governo durante o período entre o decreto de dissolução do Parlamento, a convocação de novas eleições (Marcelo tem 60 dias para as marcar) e, depois, a tomada de posse do novo Executivo? Teremos um Governo em gestão, que apenas poderá tomar as decisões estritamente necessárias e não poderá tomar iniciativas que criem encargos para os seus sucessores ou, pelo contrário, António Costa mantém-se em plenas funções, tal qual como até agora?

Se em anteriores crises políticas, com governos demissionários, a questão não se pôs, desta vez há um ingrediente novo: o primeiro-ministro não se demitirá, segundo afirmou já por variadas vezes. Ora, a Constituição da República Portuguesa (CRP) prevê “o elenco taxativo das causas de demissão automática do Governo” e entre elas não está a dissolução do Parlamento. Assim, pode considerar-se que sem uma iniciativa do PR ou do primeiro-ministro a demissão do Executivo só ocorre quando um outro estiver eleito e pronto a tomar posse. Até lá, “e fazendo uma interpretação literal da CRP, teremos na prática um Governo em plenitude de funções”, explica a constitucionalista Raquel Brízida Castro.

Tiago Duarte, outro constitucionalista, concorda e considera que, não estando demitido, “o Governo está em plenitude de funções” e assim se manterá até ao início da nova legislatura. Este é, sublinha, “um caso inédito”, já que em anteriores crises políticas sempre se verificou a demissão do governo.

Apesar de inédita, esta situação foi, porém, estudada em termos académicos. E, explica Raquel Brízida Castro, “a doutrina divide-se”. Jorge Miranda, o “pai da CRP”, declara que, numa situação destas, “é claro que o Governo fica em gestão”. O professor da Faculdade de Direito de Lisboa entende que há, nesta matéria, uma lacuna constitucional, não fazendo sentido que, dissolvido o Parlamento, o Governo mantenha plenos poderes. E, na sua opinião, deve aplicar-se, por analogia, o que está previsto também na CRP para as Assembleias Regionais.

Maria d’Oliveira Martins explica por que razão muitos constitucionalistas não aceitam esta interpretação: “Se o legislador constituinte quisesse que o Governo ficassem em gestão neste casos, teria deixado isso claro na CRP”, declara esta professora de Direito da Católica. E tem sido essa, também a posição agora defendida por fontes do Executivo.

Veto de Marcelo é absoluto

A plenitude de poderes poderá, contudo, ser apenas um aspeto jurídico. “Em termos políticos claro que o Executivo está politicamente enfraquecido. É uma situação estranha em que temos um governo politicamente ferido de morte, mas com os mesmos poderes”, refere Tiago Duarte.

“Pode continuar a legislar, mas se calhar não vai querer tomar medidas de fundo que comprometam os orçamentos seguintes”, afirma, por seu turno, Mariana d’Oliveira Martins. “Politicamente é muito difícil que o Governo queira atirar compromissos para o futuro e ter uma atividade legislativa como se estivesse a trabalhar normalmente”, acrescenta.

E há outra coisa a ter em conta: com o chumbo do OE, o país entra em 2022 em duodécimos, o que significa que fica limitado na execução orçamental àquilo que está previsto no OE de 2021. Não poderá, desde logo, avançar com o aumento prometido do salário mínimo para a Função Pública se o OE de 2021 não lhe der margem de manobra para essa despesa, exemplifica Tiago Duarte.

Por outro lado, e se é certo que, com o Parlamento dissolvido, haverá “uma fiscalização parlamentar diminuída”, é preciso lembrar que “o Governo tem uma dupla responsabilidade: perante a AR e perante o Presidente” que, “se considerar que isso é necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, o poderá demitir” explica Raquel Brízida Castro. E, mais, acrescenta Mariana d’Oliveira Martins, o Presidente tem o poder de veto que, no caso dos diplomas do Governo, é absoluto”, pelo que, na prática, teremos “o Governo sob controlo direto do PR”, sintetiza.

Em suma, Costa não se demite, mas todas as suas decisões serão escrutinadas por Marcelo, o que, politicamente, retira relevância à questão sobre se, não se demitindo, mantém ou não plenos poderes. A gestão corrente, essa manter-se-á e o Governo terá legitimidade para, nomeadamente, “executar as verbas do PRR”, diz Mariana d’Oliveira Martins.

Em termos políticos o Governo está enfraquecido. Politicamente ferido de morte, mas com os mesmos poderes.TIAGO DUARTE
Constitucionalista