Notícias



IVA das bicicletas baixou, mas Fisco diz que as peças não são abrangidas
JORNAL DE NEGÓCIOS


A compra de uma bicicleta beneficia de IVA à taxa reduzida e o arranjo de alguma avaria também. Já se estiver em causa “a mera transmissão de partes, peças ou acessórios”, então essa deverá ser tributada à taxa normal do imposto, de 23%. A orientação é da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), e está expressa num ofício circulado de 5 de janeiro deste ano, onde o Fisco elaborou um conjunto de instruções destinadas a clarificar a aplicação das alterações em sede de IVA constantes do Orçamento do Estado (OE) para 2023.

No caso das bicicletas, a reparação já beneficiava da taxa reduzida, mas uma proposta de alteração ao OE apresentada pelo Livre, que o partido justificou como estando integrada no âmbito da Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável 2020-2030, de acordo com a qual se pretende que pelo menos 10% das deslocações nas cidades portuguesas sejam feitas em bicicleta até 2030, alargou o âmbito.

A nova norma fala em velocípedes e, uma vez que “não estabelece qualquer limitação quanto ao tipo de velocípedes, deve entender-se que a mesma abrange os veículos assim classificados nos termos do Código da Estrada”, sustenta a AT. Já no que refere às “partes, peças ou acessórios” o entendimento é muito mais limitativo. O documento do Fisco, assinado pelo subdiretor-geral para a área do IVA, Fernando Campos Pereira, é claro: a sua “mera transmissão” deverá manter a taxa normal.

Esta opção da AT é “no mínimo estranha”, afirma Clotilde Palma, professora universitária e especialista em IVA. Afinal, lembra, “em IVA o tratamento das operações acessórias segue o tratamento das operações principais”. Trocando por miúdos, embora a regra geral do IVA seja a de que cada operação é independente e como tal deve ser tributada, quando estamos perante operações acessórias, a avaliação deve ser casuística, explica a especialista. Ora, “um guiador, um assento, uma roda, são algo que em si não cumpre nenhuma função a não ser que esteja inserido na própria bicicleta”. E assim, sendo acessório, deve “seguir o tratamento da operação principal”.

Susana Claro, fiscalista da Pwc, tem idêntica opinião. “Esse entendimento da AT é bastante discutível, até considerando as decisões que já houve no Tribunal Arbitral” lembra. “Estando em causa peças que melhorem o comportamento da bicicleta que tenham aquela finalidade única e não possam ter outra, então devem ter a mesma taxa”.

Afonso Arnaldo, também especialista em IVA, da consultora Deloitte, tem uma abordagem um pouco diferente. Na sua opinião, se as peças ou acessórios forem adquiridos juntamente com a bicicleta, “numa mesma operação”, então “é defensável que devem as componentes adicionais seguir aquela compra com um todo e que se aplique ao conjunto a taxa reduzida”. Mas mesmo aí, “se começamos a adicionar coisas que não são necessárias à essência da bicicleta, isso dificulta a questão”.

E se as peças ou acessórios forem adquiridos e incorporados no âmbito de uma operação de reparação? Nesse caso, “concorrem para o valor da reparação e deve ser tudo pela taxa reduzida”, entende o fiscalista.

Kits elétricos e cadeirinhas

Clotilde Palma não tem dúvidas de que a questão é controversa. E lembra “as muitas decisões que há do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a questão das operações acessórias”. Mesmo quando as mesmas não coincidem no tempo. “Tudo o que é acessório segue a operação principal, não tem a ver com o timing, tem a ver com questões de substância”, acrescenta.

Susana Claro lembra, por seu turno, um caso que ficou célebre entre os fiscalistas e que correu no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD). Estava aí em causa a forma de tributar as próteses dentárias, sendo que a AT aplicava diferentes taxas de IVA consoante fossem aplicados completos ou em partes. Não sendo assim, os implantes dentários, pilares de fixação e as coroas dentárias acabam por ter taxas de imposto diferentes (a reduzida ou a normal). O caso chegou a tribunal e o Fisco perdeu e mais tarde acabou por ser estabelecido internamente um novo entendimento: afinal, a taxa reduzida poderia aplicar-se aos vários componentes na medida em que “não possam ter outra utilização além de integrarem o implante dentário”.

Na sua proposta inicial, o Livre propunha também o IVA reduzido para as componentes, mas depois arrepiou caminho. No setor, há vozes a defender que a lei seja clara em relação às peças e que o IVA seja também à taxa reduzida. É o caso da Mubi – Associação pela Mobilidade Urbana, que dá como exemplo “os kits de conversão para bicicletas elétricas”, que têm de pagar 23% de IVA. Também as cadeirinhas para criança, adaptadas às bicicletas, suportam a taxa normal. Já as dos automóveis beneficiam de IVA à taxa reduzida, prevista formalmente na lei.